Tags: O Triste Fim de Policarpo Quaresma, Resumo e Análise, Literatura Brasileira
“O
triste fim de Policarpo Quaresma”
O livro começa com
Policarpo Quaresma voltando para sua residência após seu trabalho,
onde morava com sua irmã (Adelaide) e recebeu Ricardo Coração dos
Outros para o jantar. Ricardo tem ensinado Quaresma a tocar violão.
A estrutura secundária do
texto do primeiro capítulo, que é desenvolvida juntamente com o
desenrolar desse enredo inicial, introduz informações associadas à
figura de Policarpo: major, subsecretário, trabalha no Arsenal de
Guerra e faz tudo sempre nos mesmos horários, a ponto de a
vizinhança conhecer seus hábitos, como a hora em que ele regressava
para casa. Tem uma biblioteca com livros da Literatura Nacional e
também da História do Brasil. Por uma técnica de retomada de
fatos, o autor ilustra o histórico de Quaresma a respeito de seu
patriotismo: desde sua juventude, Quaresma era um ferrenho patriota
e, desde então, defendia o Brasil com todo o fervor. Suas roupas
eram nacionais, o jardim de sua casa tinha apenas espécies
brasileiras e exigia até que a culinária fosse genuinamente
nacional. Seu patriotismo era firme e seguro: não tinha nenhum traço
regionalista e sua postura era de um genuíno brasileiro. Por isso
ele estava engajado na arte de aprender a tocar violão e aprender as
modinhas: para ele, esse era o ritmo musical brasileiro e tudo que
ele quer é ter uma postura genuinamente nacional.
Num baile promovido para
celebrar o noivado de Ismélia (filha do general) e Cavalcanti, corre
a notícia de que Quaresma havia enlouquecido. Esse fato justifica o
título desse capítulo (já que a notícia foi dada por Genelício).
Ao longo desse capítulo,
são dados os detalhes do baile, com destaque ao comportamento e às
convenções sociais da época (as solteiras parabenizavam a noiva e
davam sugestões e dicas de, por exemplo, onde comprar o enxoval).
Ismélia não parecia animada e, quando respondia às suas amigas,
era sempre com monossílabos. Para a mulher, naquela época, seu
papel fundamental se resuma ao casamento e, por conseguinte, às suas
inerentes atribuições.
O autor aproveita esse
capítulo também para descrever o círculo de amizades do general
Albernaz (Alte. Caldas, Major Inocêncio, doutor Florêncio) e suas
conversas no jogo (solo). Os militares, ao longo do livro, sempre
conversavam sobre guerras e a glória do militarismo, mas nunca
participaram de uma guerra sequer e nunca comandaram.
Quaresma mandou um
requerimento para a Câmera dos Deputados, solicitando que a língua
tupi se tornasse a língua oficial do Brasil a fim de conseguir a
soberania nacional, já que o português era europeu. O fato foi
motivo de piadas e sarcasmo pela publicidade durante duas semanas
inteiras. Não se falava outra coisa na cidade a não ser o
requerimento absurdo de Quaresma, já começando a ser visto como
maluco. É importante lembrar que, para Quaresma, aquela solicitação
era ingênua e puramente patriótica, mas não sabia as conseqüências
que aquilo poderia dar.
Trecho em destaque:
personalidade de Policarpo e sua postura em relação ao ocorrido.
Tudo
isto irritava profundamente Quaresma. Vivendo há trinta anos quase
só, sem se chocar com o mundo, adquirira uma sensibilidade muito
viva e capaz de sofrer profundamente com a menor coisa. Nunca sofrera
críticas, nunca se atirou à publicidade, vivia imerso no seu
sonho, incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fora
deles, ele não conhe- cia ninguém; e, com as pessoas com quem
falava, trocava pequenas banali- dades, ditos de todo dia, coisas com
que a sua alma e o seu coração nada tinham que ver.
O autor aproveita esse fato
para apresentar outro personagem: Coleoni. Era rico e viúvo. Tinha
uma filha chamada Olga. Morava numa grande casa, edificada e
planejada por ele mesmo. Vivia sozinho, reservado e desejava casar a
filha, mas evitava de forçá-la. Dava liberdade a ela, ao contrário
do general e sua filha Ismália. É interessante que o autor
aproveita o enredo para traçar, do eixo de desenvolvimento
principal, pequenas histórias paralelas que ilustram outros
personagens, estendendo ainda mais a visão sobre a sociedade da
época.
Apesar
de ter enriquecido, Coleoni tinha em grande conta o seu obscuro
compadre. Havia nele não só a gratidão de camponês que recebeu um
grande benefício, como um duplo respeito pelo major, oriundo da sua
qualidade de funcionário e de sábio.
Europeu,
de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquele sagrado
respeito dos camponeses pelos homens que recebem a investidura do
Estado; e, como, apesar dos bastos anos de Brasil, ainda não sabia
jun- tar o saber aos títulos, tinha em grande consideração a
erudição do compadre.
Não
é, pois, de estranhar que ele visse com mágoa o nome de Qua- resma
envolvido em fatos que os jornais reprovavam.
Quaresma, por distração em
seu trabalho, acabou escrevendo um ofício durante seu expediente (no
Arsenal). O ofício, em tupi, passou despercebido pelos secretários,
pelo diretor e chegou ao ministério, gerando um verdadeiro rebuliço,
pois ninguém havia entendido que diabo de documento era aquele. O
homem mais hábil da secretaria pensou que estivesse escrito em
grego. O ministro devolveu o ofício e censurou o arsenal. O coronel,
muito irritado, suspendeu Policarpo Quaresma.
Policarpo ficou internado no
hospício. Recebia a visita de Corleoni e de Olga. O autor aproveita
essa oportunidade para falar mais sobre Olga e a relação dessa
personagem com o casamento. Olga iria se casar com um doutor, mas ela
mesma não sabia, ao certo, o que estava fazendo. Afinal, o casamento
é mais uma convenção social, uma necessidade ao invés de ser algo
inerente e introspectivo à vontade da própria pessoa. Simplesmente,
era preciso se casar pois é assim que ocorre na sociedade.
—Vai
casar-se, Dona Olga? Parabéns.
—Obrigada,
fez ela.
—Quando
é, Olga? perguntou Dona Adelaide.
—Lá
para o fim do ano... Tem tempo...
E
logo choveram perguntas sobre o noivo e afloraram as considera- ções
sobre o casamento. E ela se sentia vexada; julgava, tanto as
perguntas como as considera- ções, impudentes e irritantes; queria
fugir à conversa, mas voltavam ao mesmo assunto, não só Ricardo,
mas a velha Adelaide, mais loquaz e curiosa que comumente. Esse
suplício que se repetia em todas as visitas, quase a fazia
arrepender-se de ter aceitado o pedido.
Em
paralelo com essa situação, o autor aproveita para ilustrar o que
estava acontecendo com Ismênia:
Dona
Adelaide contou então o drama que agitava a pequenina alma da filha
do general. Cavalcânti, aquele Jacó de cinco anos, embarcara para o
interior, há três ou quatro meses, e não mandara nem uma carta nem
um cartão. A menina tinha aquilo como um rompimento; e ela, tão
inca- paz de um sentimento mais profundo, de uma aplicação mais
séria de energia mental e física, sentia-o muito, como coisa
rremediável que absorvia toda a sua atenção. Para Ismênia, era
como se todos os rapazes asadoiros tivessem deixado de existir.
Arranjar outro era problema insolúvel, era trabalho acima de suas
forças. Coisa difícil! Namorar, escrever cartinhas, fazer acenos,
dançar, ir a passeios — ela não podia mais com isso.
Decididamente, estava condenada a não se casar, a ser tia, a
suportar durante toda a existência esse estado de solteira que
apavorava. Quase não se lembrava das feições do noivo, dos seus
olhos esgazeados, do seu nariz duro e fortemente ósseo...
O autor aproveita também
para fazer considerações sobre a cidade do Rio de Janeiro: a
paisagem e os principais pontos perto do hospício. Os bondes andando
vagarosamente, o clima agradável e ameno, um contraste com o
ambiente doentio do hospício.
Ao longo dessa obra, fica
cada vez mais evidente que o autor utiliza técnicas literárias para
conciliar o enredo principal com apontamentos e ilustrações
paralelas que evidenciam as características daquela sociedade
naquela época.
Quaresma, após passar 6
meses no hospício, aparentemente curado, se retirou para o sítio do
Sossego. Vejamos o estado de espírito do nosso personagem ao sair do
manicômio:
Quaresma
saiu envolvido, penetrado da tristeza do manicômio. Voltou à sua
casa, mas a vista das suas coisas familiares não lhe tirou a forte
impressão de que vinha mpregnado. Embora nunca tivesse sido alegre,
a sua fisionomia apresentava mais desgosto que antes, muito
abatimento moral, e foi para levantar o ânimo que se recolheu àquela
risonha casa de roça, onde se dedicava a modestas culturas.
A ideia de se recolher na
roça veio de Olga após ver o desgosto do padrinho (Quaresma) ao
sair do hospício. Quaresma logo se entusiasmou com a ideia de
cultivar as férteis terras brasileiras. E, no início, deu certo.
E
ele viu então diante dos seus olhos as laranjeiras, em flor,
olentes, muito brancas, a se enfileirar pelas encostas das colinas,
como teorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a sopesar
com esforço os gran- des pomos verdes; as jabuticabas negras a
estalar dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis,
recebendo a unção quente do sol; as abobreiras a se arrastarem com
flores carnudas cheias de pólen; as melancias de um verde tão fixo
que parecia pintado; os pêssegos veludosos, as jacas mons- truosas,
os jambos, as mangas capitosas; e dentre tudo aquilo surgia uma linda
mulher, com o regaço cheio de frutos e um dos ombros nu, a lhe sor-
rir agradecida, com um imaterial sorriso demorado de deusa — era
Pomona, a deusa dos vergéis e dos jardins!..
Quaresma era ajudado por
Anastácio, o velho preto, que o ensinava a capinar. Eles capinavam,
plantavam e preparavam a terra. Entretanto, Quaresma ignorava o fato
de que as terras estavam cansadas e se esgotando. Para ele, as terras
brasileiras eram as melhores do mundo e as terras da Europa eram
plantadas há milhares de anos, logo julgava as terras perfeitas e
ignorava o fato de que elas precisavam de um “descanso”.
—Isto
hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sítio já foi uma
lindeza, major! Quanta fruta, quanta farinha! As terras estão
cansadas e...
—Qual
cansadas, Seu Antonino! Não há terras cansadas... A Europa é
cultivada há milhares de anos, entretanto...
—Mas
lá se trabalha.
—Por
que não se há de trabalhar aqui também?
—Lá
isso é verdade; mas há tantas contrariedades na nossa terra que...
—Qual,
meu caro tenente! Não há nada que não se vença.
—O
senhor verá com o tempo, major. Na nossa terra não se vive senão
de política, fora disso, babau! Agora mesmo anda tudo brigado por
causa da questão da eleição de deputados...
Ricardo Coração dos
Outros, que andava desanimado e triste, relembrando as lembranças
que o violão lhe trouxe e os versos antigos, é convidado a alegrar
o baile de casamento de Quinota (outra filha do general Albernaz) e,
aos poucos, seu nome fica cada vez mais comentado e divulgado,
recebendo convite do dr. Campos (presidente da Câmara).
O próximo capítulo dá
continuidade ao anterior, mostrando a ascensão de Ricardo com suas
modinhas e versos. No início, temos o casamento de Olga, do qual
Quaresma não participou.
Quaresma
não fora à festa, mandara o leitão e o peru da tradição e
escrevera uma longa carta. O sítio empolgara-o, o calor ia passar,
vinha a época das chuvas, das semeaduras, e não queria afastar-se
de suas terras. A viagem seria breve, mas mesmo assim, perdendo um
dia ou dois, era como se começasse a desertar da batalha.
E quanto a Ricardo Coração
dos Outros:
À
festa do doutor Campos, seguiram-se outras a que Ricardo deu a honra
de sua presença e alegria da sua voz. Quaresma não o acompanhava,
mas gozava a sua vitória. Se bem que o major tivesse abandonado o
violão, ainda continuava a prezar aquele instrumento essencialmente
nacional. As conseqüências desastrosas do seu requerimento em nada
tinham abalado as suas convicções patrióticas. Continuavam as suas
idéias profundamente arraigadas, tão-somente ele as escondia, para
não sofrer com a incompreen- são e maldade dos homens. Gozava,
portanto a fulminante vitória de Ricardo, que indicava bem naquela
população a existência de um resíduo forte da nossa nacionalidade
a resistir às invasões das modas e gostos estrangeiros. Ricardo
recebia todas as honras, todos os favores, por parte de todos os
partidos. O doutor Campos, presidente da Câmara, era quem mais o
cumulava de homenagens.
Quaresma,
porém, foi atacado pelo jornal, que trazia o seguinte artigo:
Quaresma,
meu bem, Quaresma!
Quaresma
do coração!
Deixa
as batatas em paz,
Deixa
em paz o feijão.
Jeito
não tens para isso
Quaresma,
meu cocumbi!
Volta
à mania antiga
De
redigir em tupi.
E
sua reação imediata foi essa:
O major ficou estuporado.
Que vinha ser aquilo? Por quê? Quem era? Não atinava, não achava o
motivo e o fundo de semelhante ataque. A irmã aproximara-se
acompanhada da afilhada. Quaresma estendeu-lhe o jornal com o braço
tremendo: "Lê isto, Adelaide". A velha senhora viu logo a
perturbação do irmão e leu com pressa e solicitude. Ela tinha
aquela ampla maternidade das solteironas; pois parece que a falta de
filhos reforça e alarga o interesse da mulher pelas dores dos
outros. Enquanto ela lia, Quaresma dizia: mas que fiz eu? Que tenho
com política? E coçava os cabelos já bastante encanecidos.
Quaresma
continuava a insistir na ideia de que as terras Brasileiras eram as
mais férteis do mundo: Adubos?!
É lá possível que um brasileiro tenha tal idéia! Pois se temos as
terras mais férteis do mundo!
Porém, antes mesmo de as
terras se esgotarem, Policarpo foi surpreendido por um ataque de
formigas.
O
major levantou-se, agarrou o castiçal e foi à dependência da casa
donde partia o ruído, assim mesmo como estava, em camisa de dormir.
Abriu a porta; nada viu. la procurar nos cantos, quando sentiu uma
ferroada no peito do pé. Quase gritou. Abaixou a vela para ver
melhor e deu com uma enorme saúva agarrada com toda a fúria à sua
pele magra. Descobriu a origem da bulha. Eram formigas que, por um
buraco no assoalho, lhe tinham invadido a despensa e carregavam as
suas reservas de milho e feijão, cujos recipientes tinham sido
deixados abertos por inadvertência. O chão estava negro, e
carregadas com os grãos, elas, em pelotões cerrados, mergulhavam no
solo em busca da sua cidade subterrânea. Quis afugentá-las. Matou
uma, duas, dez, vinte, cem; mas eram milhares e cada vez mais o
exército aumentava. Veio uma, mordeu-o, depois outra, e o foram
mordendo pelas pernas, pelos pés, subindo pelo seu corpo. Não pôde
agüentar, gritou, sapateou e deixou a vela cair. Estava no escuro.
Debatia-se para encontrar a porta; achou e correu daquele ínfimo
inimigo que, talvez, nem mesmo à luz radiante do sol o visse
distintamente...
Quaresma combateu ferozmente
as formigas. Gastou dinheiro com formicidas e logo vieram os
primeiros lucros do sítio com os abacateiros que ele havia livrado
das ervas-de-passarinho. Sentiu-se muito orgulhoso, apesar de os
lucros serem ínfimos por causa dos gastos e intensificou ainda mais
o trabalho.
Entretanto, as formigas
voltaram e atacaram tudo. O milho, que estava a meio palmo da terra,
foi atacado por elas (saúvas) e não sobrou nada. Quaresma queimou
os formigueiros com formicida, percorreu o sítio inteiro,
bombardeando todos os buracos e entradas do sítio com veneno,
gastando muito dinheiro com isso.
Acendeu
um fósforo e o que viu, meu Deus! Quase todas as laranjeiras estavam
negras de imensas saúvas. Havia delas às centenas, pelos troncos e
pelos galhos acima e agitavam-se, moviam-se, andavam como em ruas
transitadas e vigiadas a população de uma grande cidade: umas
subiam, outras desciam; nada de atropelos, de confusão, de desordem.
O trabalho como que era regulado a toques de corneta. Lá em cima
umas cortavam as folhas pelo pecíolo; cá embaixo, outras
serravam-nas em pedaços e afinal eram carregadas por terceiras,
levantando-as acima da descomunal cabeça, em longas fileiras pelo
trilho limpo, aberto entre a erva rasteira.
Para completar, havia a rede
de leis e os regulamentos que reprimiam o povo. Quaresma tinha, por
lei, de capinar a calçada (que era cerca de 1200 metros) e tinha que
pagar imposto por vender fora do município.
Em
virtude das posturas e leis municipais, rezava o papel, o Senhor
Policarpo Quaresma, proprietário do sítio "Sossego" era
intimado, sob as penas das mesmas posturas e leis, a roçar e capinar
as testadas do referido sítio que confrontavam com as vias públicas.
(...)Recebeu
o papel e leu. Não vinha mais da municipalidade, mas da coletoria,
cujo escrivão, Antonino Dutra, conforme estava no papel, intimava o
Senhor Policarpo Quaresma a pagar quinhentos mil-réis de multa, por
ter enviado produtos de sua lavoura sem pagamento dos respectivos
impostos.
Diante de todos esses fatos,
Quaresma abandonou o sítio e, na mesma hora, foi dar apoio ao
presidente Mal. Floriano Peixoto, seu ídolo, já que a Revolta
da Armada havia explodido. Mandou um telegrama para o Marechal:
"Marechal Floriano,
Rio. Peço energia. Sigo já. — Quaresma".
O general Albernaz
participou para fazer resistência contra a Revolta da Armada, porém
não era por patriotismo, mas sim por precisar de dinheiro para casar
a filha Ismênia. O Alte. Caldas participou por apenas desejar
comandar uma esquadra, coisa que nunca havia feito na vida. Quando
era capitão-tenente, foi indicado para comandar um navio. Procurou
por todo o Brasil pelo navio e descobriu mais tarde que havia
afundado na Guerra do Paraguai. O único que se comprometeu a
defender o governo por patriotismo havia sido Policarpo Quaresma.
Quaresma se apresentou no
Palácio Presidencial e foi falar diretamente com o Marechal. O
ambiente, ao chegar, era assim:
Estava
repleto, muitas fardas de oficiais; a avaliar por ali o Rio devia ter
uma guarnição de cem mil homens. Os militares palravam alegres, e
os civis vinham calados e abatidos, e mesmo apavorados. Se falavam,
era cochichando, olhando com precaução para os bancos de trás.
(...)
Bastava
a mínima critica, para se perder o emprego, a liberdade, — quem
sabe? — a vida também. Ainda estávamos no começo da revolta, mas
o regime já publicara o seu prólogo e todos estavam avisados
(...)
Todos
mandavam; a autoridade estava em todas as mãos. Em nome do Marechal
Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão, sem função pública
alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá ficava esquecido,
sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação dominicana.
É interessante notar a
crítica do autor referente ao Positivismo. Leia esse trecho
importante:
Os
militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os alferes,
os tenentes e os capitães. Para a maioria a satisfação vinha da
convicção de que iam estender a sua autoridade sobre o pelotão e a
companhia, a todo esse rebanho de civis; mas, em outros muitos havia
sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade. Eram os adeptos
desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico,
limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os
assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem,
condição necessária, lá diz ele, ao progresso e tam- bém ao
advento do regime normal, a religião da humanidade, a adoração do
grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos
detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escritura
fonética e eleitos calçados com sapatos de sola de borracha!... Os
positivistas discutiam e citavam teoremas de mecânica para
justificar as suas idéias de governo, em tudo semelhantes aos
canatos e emirados orientais. A matemática do positivismo foi sempre
um puro falatório que, naqueles tempos, amedrontava toda gente.
Havia mesmo quem estivesse convencido que a matemática tinha sido
feita e criada para o positivismo, como se a Bíblia tivesse sido
criada unicamente para a Igreja Católica e
não
também para a Anglicana. O prestígio dele era, portanto, enorme.
Quaresma redigiu um memorial
que iria entregar para Floriano. Nele
expunham-se as medidas necessárias para o levantamento da
agricultura e mostravam-se todos os entraves, oriundos da grande
propriedade, das exações fiscais, da carestia de fretes, da
estreiteza dos mercados e das violências políticas.
Quaresma foi ver o Marechal.
Essa era a fisionomia do presidente:
Era vulgar e desoladora.
O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava
uma grande "mosca", os traços flácidos e grosseiros; não
havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que
revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre
de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual,
mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso — parecia não ter
nervos.
Policarpo foi recebido por
Floriano. Deixou o documento sobre a mesa de Floriano após uma
rápida apresentação pessoal. Em seguida, o marechal, um pouco
indiferente, rasgou parte do documento para escrever um bilhete.
Dando-se conta disso, disse a Policarpo: Ora!
Quaresma! rasguei o teu escrito... Não faz mal... Era a parte de
cima, não tinha nada escrito.
Encontrando-se com o general
Albernaz, descobriu que sua filha, Ismênia, acabou enlouquecendo com
o delírio do casamento que não havia se realizado ainda.
A filha enlouquecera de
uma loucura mansa e infantil. Passava dias inteiros calada, a um
canto, olhando estupidamente tudo, comum olhar morto de estátua,
numa atonia de inanimado, como que caíra em imbecilidade; mas vinha
uma hora, porém, em que se penteava toda, enfeitava-se e corria à
mãe, dizendo: “Apronta-me, mamãe. O meu noivo não deve tardar...
é hoje o meu casamento.” Outras vezes recortava papel, em forma de
participações, e escrevia: Ismênia de Albernaz e Fulano (variava)
participam o seu casamento. O general já consultara uma dúzia de
médicos, o espiritismo e agora andava às voltas com um feiticeiro
milagroso; a filha, porém, não sarava, não perdia a mania e cada
vez mais se embrenhava o seu espírito naquela obsessão de
casamento, alvo que fizeram ser da sua vida, a que não atingira,
aniquilando-se, porém, o seu espírito e a sua mocidade em pleno
verdor.
Os
combates começaram. Davam tiros de canhões de qualquer jeito: o que
importava era atirar nos navios, de qualquer modo.
—O
canhão! Já! Avante! ordenou o comandante. E, em seguida, nervoso,
recomendou:
—Esperem
um pouco.
Correu
a casa e foi consultar os seus compêndios e tabelas. Demorou- se e a
lancha
avançava,
os soldados estavam tontos e um deles tomou a ini- ciativa: carregou
a peça e disparou-a. Quaresma reapareceu correndo, assustado e
disse, entrecortado pelo resfolegar:
—Viram
bem... a distância... a alça... o ângulo... É preciso ter sem-
pre em vista a eficiência do fogo.
Fontes
veio e sabendo do caso no dia seguinte riu-se muito:
—Ora,
major, você pensa que está em um polígono, fazendo estu- dos
práticos... Fogo para diante!
E
assim era. Quase todas as tardes havia bombardeio, do mar para as
fortalezas, e das
fortalezas
para o mar; e tanto os navios como os fortes saiam incólumes de tão
terríveis provas. Lá vinha uma ocasião, porém, que acertavam,
então os jornais noti- ciavam: "Ontem, o forte Acadêmico fez
um maravilhoso disparo. Com o canhão tal, meteu uma bala no
'Guanabara'." No dia seguinte, o mesmo jornal retificava, a
pedido da bateria do cais Pharoux que era a que tinha feito o disparo
certeiro. Passavam-se dias e a coisa já estava esquecida, quando
aparecia uma carta
de Niterói, reclamando as honras do tiro para a fortaleza de Santa
Cruz.
Não havia espírito de
patriotismo nenhum e Policarpo percebia isso. As deserções eram
comuns. Na verdade, a revolta passou a ser festa, um divertimento
para a cidade. Quando havia bombardeio, era como se fosse uma
atração. As pessoas alugavam binóculos para observar, como se
fosse uma apresentação de teatro. A revolta ia correndo de forma
familiar. Até pessoas civis, de vez em quando, iam até o quartel
para dar tiros de canhão. Quaresma, porém, levava tudo na
seriedade. Estudava balística e artilharia a fundo e era exagerado
em tudo.
O
marechal visitava os postos durante à noite ou à madrugada, mal
vestido com um chapéu de abas largas e uma curta sobrecasaca
surrada. Quaresma o cumprimentava e o marechal respondia tudo muito
preguiçosamente com monossílabos. Policarpo perguntou ao marechal
se ele havia lido o memorando e Floriano respondeu que sim. Quaresma,
alegre, começou a comentar, mas recebeu imediatamente uma indireta
do ditador, que disse: Mas,
pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um
desses vadios?! Não havia exército que chegasse... (...)Você,
Quaresma, é um visionário...
A
filha do general Albernaz, Ismênia, piorava cada vez mais e nem mais
valia a pena interná-la num hospital. O general tentou de tudo,
desde médicos até feiticeiros e médiuns, mas nada resolveu o
delírio e a loucura de sua filha.
O
preto considerava um instante, como se estivesse recebendo as últimas
comunicações do que não se vê nem se percebe, e dizia com a sua
majestade de africano:
—Vô
vê, nhãnhã... Tô crotando mandinga...
Ela
e o general tinham assistido a cerimônia e o amor de pais e tam- bém
esse fundo de
superstição
que há em todos nós, levavam a olhá-la com respeito, quase com fé.
—Então
foi feitiço que fizeram à minha filha? perguntava a senhora.
—Foi,
sim, nhãnhã.
—Quem?
—Santo
não qué dizê.
Ismélia
acabou morrendo pela loucura.
Quaresma foi ao enterro;
ele não gostava muito dessa cerimônia; mas veio, e foi ver a pobre
moça, no caixão, coberta de flores, vestida de noiva, com um ar
imaculado de imagem. Pouco mudara, entretanto. Era ela mesma ali; era
a Ismênia dolente e pobre de nervos, com os seus traços miúdos e
os seus lindos cabelos, que estava dentro daquelas quatro tábuas. A
morte tinha fixado a sua pequena beleza e o seu aspecto pueril; e ela
ia para a cova com a insignificância, com a inocência e a falta de
acento próprio que tinha tido em vida.
Uma ala do batalhão de
Quaresma foi destacada para guarnecer a Ilha das Enxadas e Policarpo
aceitou com relutância o cargo de carcereiro. Lá, estavam os
marinheiros revoltosos presos. Alguns deles eram escolhidos para
serem fuzilados sem motivo nenhum. Eles se aglomeravam nos
alojamentos e eram mal tratados.
Policarpo escreveu uma carta
ao marechal Floriano protestando contra o regime a qual os
marinheiros foram submetidos e acabou sendo preso. No cárcere, ele
pensava:
Iria
morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de
sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a
pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para
a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua
virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o
recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o.
E o que não deixara de ver, de gozar, de fruir, na sua vida? Tudo.
Não brincara, não pandegara, não amara — todo esse lado da
existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária,
ele não vira, ele não provara, ele não experimentara.
Aqui,
encontramos um breve resumo de suas atitudes ao longo do livro:
O
tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e
levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras
não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra
decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que
achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele
não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros,
inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma
série, melhor, um encadeamento de decepções.
Ricardo
Coração dos Outros, ao saber que Quaresma estava preso, tentou de
tudo para libertá-lo, pedindo a ajuda de Genelício, do general
Albernaz e de Bustamante, mas nada eles puderam fazer.
Ricardo
veio andando triste e desalentado, O mundo lhe parecia vazio de afeto
e de amor. Ele que sempre decantara nas suas modinhas a dedica- ção,
o amor, as simpatias, via agora que tais sentimentos não existiam.
Tinha marchado atrás de coisas fora da realidade, de quimeras. Olhou
o céu alto. Estava tranqüilo e calmo. Olhou as árvores. As
palmeiras cresciam com orgulho e titanicamente pretendiam atingir o
céu. Olhou as casas, as igrejas, os palácios e lembrou-se das
guerras, do sangue, das dores que tudo aquilo custara. E era assim
que se fazia a vida, a história e o heroísmo: com violência sobre
os outros, com opressões e sofrimentos
Tentou,
por último, pela ajuda de Olga, a afilhada de Quaresma, mas também
não conseguiu: fio tudo em vão.
E
esse foi o triste fim de Policarpo Quaresma.